Shenmue 3: uma experiência clássica reinterpretada pela tecnologia actual

No Digital Foundry, já falamos previamente sobre ‘ports impossíveis’ – jogos como Doom 2016 e The Witcher 3 na Switch que parecem negar limitações tecnológicas e trazem ainda a essência das experiências originais para um novo público. Shenmue 3 é algo muito diferente, mas igualmente improvável. É uma sequela impossível, um jogo que realmente não deveria existir devido a uma série de razões, mas que de alguma forma aqui está. É um milagre que eu esteja agora a jogar uma sequela moderna de um jogo lançado há 18 anos, um jogo que foi – por todos os critérios financeiros – um grande fracasso. A sua essência é algo a ser estimado mas, fundamentalmente, trata-se de um bom jogo e uma sequela digna? Eu diria que os resultados são mistos. Isto é Shenmue visto através de uma lente moderna, o que é absolutamente bom. No entanto, também é uma sequela produzida como um projecto indie, com limitações que afectam o alcance do projecto e, por extensão, quão refinado é o jogo.

Muitas coisas mudaram desde que o Shenmue original foi lançado. O seu anúncio e subsequente chegada à Dreamcast foram um grande evento – o culminar de tudo o que a Sega-AM2 aprendeu ao longo da sua história. Foi um dos jogos mais caros já produzidos no momento do seu lançamento – uma produção verdadeiramente luxuosa, construída num motor proprietário projectado para tecnologia de consola de ponta.

Quase duas décadas depois, o mundo em que Shenmue 3 foi lançado é um lugar muito diferente. Com um orçamento presumivelmente menor e menos recursos, a Ys Net optou por utilizar a tecnologia de terceiros através do Unreal Engine 4 para produzir o jogo para várias plataformas estabelecidas – uma mudança gigantesca face às origens de Shenmue. De blockbuster com orçamento enorme para uma produção indie, Shenmue mudou, Suzuki mudou – e a indústria de jogos actual é um lugar muito, muito diferente.

O lado multiplataforma da equação é onde sinto que Shenmue 3 realmente decepciona. Todo o marketing e demos pré-lançamento foram lançados no PC e o lançamento foi realmente a nossa primeira oportunidade de ver o jogo a correr nas consolas PlayStation 4. A resolução é mais baixa do que o esperado nos 864p na consola base e 1080p na PS4 Pro, mas ainda está óptima graças à excelente solução anti-aliasing temporal do Unreal Engine 4. No entanto, ambas as versões de consola são executadas com uma taxa de fotogramas desbloqueada que oferece uma experiência altamente variável e com solavancos.

A nossa análise em vídeo do milagre indie que é Shenmue 3.

Shenmue 3 corre cima dos 30 fotogramas por segundo, pelo menos, mas um limite da taxa de fotogramas deveria ser uma opção – pelo menos, isso alinharia a experiência com os títulos originais. No momento, a execução desbloqueada não funciona muito bem para mim. A PS4 Pro tem uma vantagem de cinco a 10fps em relação à consola base, mas a experiência não parece certa para mim em nenhum dos sistemas. Por esse motivo, eu escolheria a versão para PC. Além da resolução e da taxa de fotogramas, a PS4 e a Pro oferecem exactamente a mesma experiência visual – claramente, um objectivo definido pela Ys Net, pois essa experiência gráfica é totalmente consistente com a versão para PC na sua configuração muito alta. Tudo isto é bastante típico de um título third-party do UE4, por isso não é totalmente surpreendente mas, ainda assim, esperava mais.

Obviamente, a versão para PC tem alguns ajustes disponíveis, mas o menu de opções não é óptimo – seleccionar resoluções em full-screen, por exemplo, exige que alternes manualmente cada uma delas, com o ecrã a alterar a resolução de cada vez que passares para a próxima. A interface também é bastante orientada para o gamepad – o uso de rato e teclado resulta em algumas atribuições de teclas estranhas e outras “esquisitices”. Existem apenas quatro opções de detalhes disponíveis – baixo, médio, alto e muito alto. A versão PS4 usa muito alto e por boas razões – as configurações abaixo disso têm um impacto dramático na qualidade visual. Baixo, em particular, é pouco atraente.

Mesmo nas configurações de ponta, o visual do Shenmue 3 é bastante interessante, pois parece uma mistura da tecnologia moderna de renderização a colidir com sensibilidades mais antigas. Para ser justo, Shenmue 3 é um jogo impressionante, às vezes. Utilizando os recursos avançados de iluminação e materiais do Unreal, grande parte do jogo parece surpreendentemente realista e impressionante.

Passarás algum tempo na cidade e em torno de uma vila rural nas montanhas. A vila apresenta uma vegetação luxuriante e flores vibrantes semelhantes aos campos de canola em certas regiões da China. Os jogos originais existiam antes que a folhagem fosse possível num grande volume como este, pelo que a vegetação exuberante em Shenmue 3 confere ao jogo uma aparência muito diferente dos títulos da Dreamcast. Não há dúvida de que a vila é um ambiente bonito, mas sinto que a cidade a seguir é mais impressionante. Os edifícios são cuidadosamente criados e cheios de detalhes – a arquitectura chinesa é geralmente bonita de se ver. Os reflexos screen-space são exibidos em muitas cenas, dando ao jogo uma aparência mais impressionante.

1Além dos 1080p vs 864p, os recursos gráficos de Shenmue 3 na PS4 Pro e na unidade base são essencialmente idênticos.

A iluminação desempenha um papel enorme na definição da aparência do jogo e Shenmue 3 apresenta um sistema de progressão de horário do dia totalmente dinâmico. A atmosfera varia muito com base nisso – sair à noite é uma experiência muito diferente de passear durante o dia. O céu em si é muito dinâmico, com ventos e nuvens a variar de dia para dia. Também há clima dinâmico – o solo fica molhado e lamacento após uma tempestade.

Além disso, o trabalho de textura em si é impressionante. Às vezes é desigual, mas há uma quantidade razoável de detalhes se olhares com atenção. Muitas superfícies até fazem uso de mapas de oclusão de paralaxe com grande efeito, dando profundidade adicional às cenas. Mas grande parte da experiência de Shenmue é baseada nos seus interiores – e há muito que explorar aqui nesta nova sequela, com quantidades generosas de detalhes dedicados até a itens incidentais. Infelizmente, também há muita repetição – especialmente no início -, mas isso também aconteceu em algumas áreas de Shenmue 2, pelo que esta falha pode ser perdoada. O layout e o design são os mesmos de Shenmue mas, ao mesmo tempo, o orçamento mais baixo é certamente evidente em muitas áreas em que o jogo carece da sensação artesanal dos títulos originais da Dreamcast, resultando numa aparência desigual no jogo quando considerado como um todo, mas ainda sinto que foi feito um trabalho respeitável, dadas as enormes restrições que a equipa de produção enfrentou.

O problema é que, quanto mais jogas, mais óbvias se tornam essas restrições e muitos dos elementos do jogo parecem pouco polidos. O mais óbvio é a maneira como as cenas são tratadas. O jogo usa regularmente uma transição fade to black numa cena normal e parece estranho. A direcção da cena em geral não tem o talento dos originais da Dreamcast e sinto que não existem em número suficiente. Dito isto, quando as cenas são aumentadas, a qualidade ainda assim é muito boa. A introdução, por exemplo, foi bem realizada e possui uma aparência óptima.

Os detalhes das personagens também são geralmente bastante bons – mas, novamente, bastante inconsistentes. Personagens principais como Ryo e Shenhua estão óptimos – com grandes avanços desde a revelação original do Kickstarter. Sinto que se comparam favoravelmente aos modelos Dreamcast – um design que parece uma continuação dos jogos AM2 anteriores. Mas mesmo aqui, existem aspectos que carecem de refinamento que, uma vez apontados, não consegues deixar de ver. Por exemplo, o modo como os braços de Ryo passam pelo casaco é perturbador – e está no ecrã quase o tempo todo. O seu casaco parece exageradamente inchado de uma maneira que não consta nos jogos originais.

2A taxa de fotogramas desbloqueada é um problema em Shenmue 3 e, com base num resultado como este, um limite de 30fps melhoraria a experiência e alinhá-la-ia com os jogos originais.

Em segundo lugar, o posicionamento da câmara atrás de Ryo e o campo de visão seleccionado simplesmente não parece certo para mim, especialmente quando estás a correr. Gostaria de ver a câmara recuar um pouco para que o corpo inteiro de Ryo ficasse visível. Pelo menos no PC, os ajustes do campo de visão podem melhorar estas questões. Pelo menos os controlos em si estão modernizados – o movimento semelhante a uma grade do jogo original é substituído por um sistema de movimento mais natural e o mapa oferece maior liberdade em termos de onde os jogadores podem andar. A adição de uma câmara com o stick direito adequada também ajuda na navegação.

Onde sinto que Shenmue 3 está um passo atrás, no entanto, está no seu sistema de batalha. As lutas surgem ao longo da aventura como uma maneira de impedir o progresso, por assim dizer, mas, ao contrário do jogo original, este novo sistema de batalha parece muito simplista – mais um exercício de pressionar botões do que um jogo de luta refinado. O Shenmue original compartilha elementos com a série Virtua Fighter, mas Shenmue 3 perde um pouco essa associação. Ainda funciona bem o suficiente, suponho, mas não é bem o que poderia ser.

Eu diria que quanto mais joguei Shenmue 3, mais conflituoso fico com os meus sentimentos, a baloiçar para a frente e para trás. Há momentos que captam perfeitamente a essência dos jogos originais e eu aprecio esses momentos – mas depois podes encontrar arestas por polir ou alguma área no design que fica aquém e, por fim, há a sensação indiscutível de que o jogo perde alguma coisa .

Ainda assim, quando funciona, funciona bem. Esta é uma aventura em menor escala que a de Shenmue 2 – é muito mais íntima como o original e eu aprecio isso. Estou tão conectado aos jogos originais que chegar a esta sequela é uma alegria e uma decepção. Amo o facto de que um novo Shenmue exista – totalmente contra as probabilidades, é claro. Mas, ao mesmo tempo, as restrições no desenvolvimento impactam a experiência de uma maneira que nunca tivemos que enfrentar nos jogos originais. Por fim, sinto que os fãs de Shenmue precisam de jogar este jogo apreciando o que foi alcançado, ao mesmo tempo que percebem que se trata de um projecto indie com os recursos e o orçamento correspondentes.

Então, para onde vamos a partir daqui? Bem, este projecto trouxe a Yu Suzuki de volta à acção e esperamos que a equipa de produção aplique aquilo que aprendeu ao longo do caminho em coisas maiores e melhores. Talvez Shenmue continue ou talvez outro projecto esteja à nossa espera – algo que não esteja tão sobrecarregado de expectativa quanto uma sequela de um dos maiores clássicos de todos os tempos. Independentemente disso, neste momento – e mesmo com todas as suas falhas – recomendo ainda assim Shenmue 3 se gostas da série como eu. Apenas o facto de podermos experimentar o jogo é um pequeno milagre, e um que sempre apreciarei.

Share