Monster Boy and The Cursed Kingdom – Análise – Monstruoso

Levou quatro anos a ser produzido, mas pelo resultado valeu a pena. Monster Boy and The Cursed Kingdom é dos jogos marcadamente retro de 2018 o que mais impressiona. Todos os sprites (animações nas habilidades praticadas pelas personagens e seus movimentos) foram desenhados à mão, uma decisão que muito orgulha o parisiense Game Atelier, depois de iniciar o projecto com base num sistema alternativo e simplificado. Valeu o apoio da editora FDG Entertainment que em boa hora deslocou a produção do kickstarter para um sucessor espiritual de Wonder Boy. Adicionalmente o jogo recebeu a colaboração, a título consultivo, de Ryuichi Nishizawa, o criador desta série e também envolvido, recentemente, na produção de Wonder Boy III: The Dragon’s Trap como remasterização do clássico da Master System.

É por isso para os fãs das aventuras de plataformas e acção em 2D das épocas 8 e 16 bit um justo tributo e, mais do que isso, um sólido desenvolvimento dos atributos que marcaram as aventuras originais. Monster Boy and The Cursed Kingdom é um jogo recheado de preciosidades e ligações aos jogos que estão na base do seu desenvolvimento. Tornando evidentes ligações que ostenta, importa lembrar que este é um jogo novo, e deve ser visto enquanto sucessor espiritual de Wonder Boy. Nos quatro anos de desenvolvimento a equipa de produção, mais do que optimizar uma ideia ou um conteúdo disponível, reforçou as bases e concedeu autonomia ao jogo, pondo para lá do esforço e do investimento financeiro, uma conjugação de ideias que adquirem substracto de forma particularmente feliz assim que damos os primeiros passos nas plataformas deste Monster World desenhado em 2D.

Monster Boy é um jogo criado com uma atenção ao detalhe, ao mais pequeno pormenor, ao movimento e singularidades de cada uma das seis personagens que nos são facultadas assim que progredimos neste delicioso e vibrante mundo aberto, repleto de percursos alternativos, áreas secretas e zonas só acessíveis numa segunda passagem. Ainda que espiritualmente ligado à série Wonder Boy, vislumbramos influências de Metroid, Zelda e Castlevania, jogos que à época das consolas 16 bit alcançaram uma posição relevante, o que mostra que a produtora não olhou apenas para o seu reduto, considerando os jogos de aventuras e plataformas 2D mais marcantes dos anos noventa.

1Os sprites foram desenhados à mão, resultando numa arte exuberante.

A história é simples. O tio de Jin, a nossa personagem, perdeu a cabeça e desatou a transformar os habitantes de Monster World em animais, provocando o caos e sobretudo uma sucessão de situações hilariantes. Desenvolve-se um humor transversal à obra, o refúgio perfeito para os autores materializarem o consolo militante de quem chega. Na forma de artes mágicas, poderes especiais e golpes melee ao jeito de um bom brawler, não faltam desculpas para percorrermos a paleta de poderes como quem debica diante de uma roda de alimentos à espera da festa na boca. Claro que a progressão é suave e nada disto se faz sem os devidos exageros. Desbravar tudo o que Monster World tem para oferecer excede bem mais de uma dezena de horas, mas serão recompensados os sortudos por desbloquearem todas as zonas secretas e áreas, onde repousam os melhores tesouros e consequentemente os escudos e espadas com que abrimos caminho e nos defendemos.

Destaque para a introdução de cenas animadas, desde o segmento inicial até aos ulteriores desenvolvimentos, com vantagem de poderem jogar com as vozes em japonês, o que vai de encontro ao legado espiritual da série. Mas embora este seja um jogo de acção e plataformas, é especialmente um jogo de exploração com imensas sequências de voltar atrás. As plataformas são o pretexto para vos levar neste jogo de avanços e recuros até à próxima arca, até ao próximo ferreiro, mercador ou ervanário, onde encontram poções, escudos e itens essenciais à jornada. Muitos destes objectos são obtidos a troco de moedas de ouro (libertadas pelos inimigos sempre que os vencem). Porém, são coisas essenciais à progressão. Com elas não só conseguem derrotar inimigos mais fortes e superar várias ameaças, como ainda abrem percursos alternativos, fechados momentaneamente.

Embora possua elementos de um jogo de role play com vista à progressão da personagem (vai ganhando mais corações à medida que fortalece e nisto lembra o modelo de crescimento de Link em The Legend of Zelda), não é propriamente um sistema de role play que está em causa. Em lugar do sistema de evolução de uma só personagem com base em múltiplas habilidades, os produtores desenvolveram várias personagens dotadas dos seus atributos. Ao vencerem um boss adquirem uma nova forma enquanto animal. Sob a forma de um porco, o cheiro é uma habilidade que lhe permite descobrir tesouros e farejar utilidades. Estas múltiplas personalidades de Jin (serpente, leão, sapo e dragão) estão criadas com muito detalhe e uma qualidade de animação soberba, traduzindo comportamentos muito realistas sob uma tela de animação.

O backtracking é um elemento indissociável de Monster Boy, uma consequência das múltiplas personagens e habilidades que lhes permitem chegar a específicos pontos. Pensar concluir o jogo com tudo o que há para descobrir num primeira corrida só por mera hipótese. Ainda que estejamos perante um mundo aberto comedido e menos denso que um Castlevania ou Metroid, é grande e vasto. Particularmente rico, recheado de surpresas e visualmente irrepreensível, consegue surpreender-nos a cada virar de página, espelhando bem o porquê de tantos anos em desenvolvimento. Vale a pena explorar cada recanto, cada área. Existem save points onde podem regenerar a saúde e gravar o jogo para continuar mais adiante.

Não se pode dizer que Monster Boy seja um jogo particularmente difícil. Há um equilíbrio redundante que agradará aos veteranos. Mas não faltam picos de maior exigência, especialmente em zonas densamente povoadas de inimigos e onde por força do terreno e montagem de algumas armadilhas se convoca toda a precisão e segurança nos controlos para as superar. Os “bosses” não são tão temíveis como os que encontramos em Cuphead. Figuras majestosas e imponentes, dotadas de uma aparente capacidade de improviso, recriam alguns dos momentos mais fascinantes pela tensão imanente. Os controlos de Jin – nas suas múltiplas formas – são eficazes e tremendamente ajustados à acção e plataformas em 2D.

Visualmente deslumbrante, Monster Boy é o desenvolvimento perfeito das aventuras clássicas 8 e 16 bit de Wonder Boy. Conserva o charme dos clássicos, na essência do 2D, mas ao mesmo tempo promove uma camada de cores, texturas e desenhos em perfeita coerência e harmonia com os traços das obras originais. Os sprites desenhados à mão e todas as animações inerentes contribuem para um resultado extraordinário. A fluidez dos 60 fotogramas garante não só um perfeito controlo da personagem como uma tela muito viva, orgânica e profunda, criando a convicção de existir algo para lá do 2D em formato “scroll” lateral. Mais do que um sucessor espiritual de Wonder Boy, esta nova produção devolve importância a um género diluído no tempo e recoloca os jogos de acção e plataformas 2D na senda do sucesso.

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